terça-feira, 3 de novembro de 2009

Um Alerta Perigoso

“Criminoso invade sítio e mata caseiro.”
A manchete do jornal chamou a atenção de seu Derci, sentado na mesa de canto do boteco. Curioso, tentou ler toda a notícia, mas como estava tendo muita dificuldade, desistiu. Conseguiu entender que o fato ocorreu no sítio do seu Joaquim, um local perto dali, e que o bandido assaltou para roubar as armas e as economias de Mané, o caseiro. O delegado encarregado do caso ainda não tinha pistas.
Que audácia! A violência estava se estendendo para a tranquilidade do campo.
Tornou a examinar o texto. Se fixou na análise da foto estampada no centro da notícia, sem se preocupar em decifrar um nome complicado escrito abaixo. O importante era tomar conhecimento das feições do assassino. Cara de bandido, mesmo! Cabeça um tanto triangular, parecendo de nordestino. Testa larga, sobrancelhas grossas, olhos puxados. Maçãs do rosto salientes. Nariz largo, com narinas desparelhas. O orifício de uma não se igualava ao tamanho do orifício da outra. Lábios estreitos. Olhar de mau. Guardou aquela imagem. Ainda bem que possuía uma boa espingarda de caça, herança de um amigo da família. Era bom ficar de sobreaviso.
Seu Derci era muito valorizado naquele lugar, onde morava desde menino. Foi o único das redondezas que freqüentou a escola do seu Juvêncio, aberta quilômetros adiante. A necessidade de ajudar o pai na lavoura, não permitiu que ele pudesse prolongar muito seus estudos. Aprendeu o suficiente para conseguir decifrar a maioria das complicações escritas. Por vezes, saltava certos trechos da leitura, pela dificuldade de dar sentido às palavras. Morador dos mais antigos do lugar, todos nele confiavam.
Além de um tanto “ilustrado”, como diziam, era alvo da admiração por seus conhecimentos medicinais. Tornou-se o farmacêutico da picada. Sujeito astuto, inteligente, tinha sempre um conselho preciso, quando o consultavam. Para os males físicos, receitava infusões de ervas caseiras que, se nem sempre curavam, mal não faziam.
Picada vinte, distante quilômetros da cidade mais próxima, era um lugarejo de poucas casas, distribuídas em torno de uma velha estação de trem desativada. Modernismos não chegaram ao lugar. Continuava agreste, com sua população caseira, sua manutenção familiar. As pessoas eram simples, incultas, sem grandes ambições. Boa gente, constituíam uma grande família, unida por laços de agradável convívio.
Quando a notícia do crime, espalhada por seu Derci, circulou pelo local, todos ficaram apreensivos.
Seu Derci, para alertar os moradores, fez passar de mão em mão o único exemplar do jornalzinho que possuía. Todos precisavam se familiarizar com a imagem do perigoso bandido. Fez mais: fixou no salão da estalagem local a página do jornal, com a frase de sua autoria: “BANDIDO À SOLTA. CUIDE-SE.” Entre muitos erros e acertos conseguiu redigir o alerta. Ficou satisfeito com a precaução tomada. Mais para os forasteiros, pois os habitantes do lugar, na sua maioria, não sabiam ler. Mas, de viva voz, já havia posto a pequena comunidade a par de todos os detalhes do grave problema.
Seu Derci era um homem convincente, insistente, persistente.
Em todas as oportunidades trazia o assunto para a conversa. Nas reuniões da turma no boteco, nos serões familiares, nos encontros casuais.
Vários dias um pavor permanente se estendeu pela região. À tardinha os cuidados eram redobrados. Aferrolhavam-se portas, cerravam-se janelas, recolhiam-se as crianças mais cedo para dentro das casas, soltavam-se os cães.
Os dias passavam e o medo avultava, incentivado por seu Derci, que sempre tinha um acontecimento novo, estarrecedor, para espalhar.
A sua maior recomendação é que guardassem o visual do bandido, para um possível reconhecimento.
Certo entardecer, quando o lugarejo ainda não estava recolhido, um enorme alvoroço movimentou o lugar.
Seu Zezé, o dono da estalagem, estava apavorado. Mandou um garoto chamar seu Derci, porque viu sentado numa mesa do boteco o famoso bandido. Apesar de uma barba principiante, não restava dúvida. Era o mesmo sujeito. E nem se preocupava em esconder um agressivo 38 fixado à cintura.
O garoto que levou o recado já voltou espalhando a notícia por onde passava.
O povaréu foi se dirigindo para as proximidades do boteco.
Seu Derci tomou da espingarda e afoitamente se arvorou em defensor dos moradores. Foi ao encontro do visitante.
Ao entrar na estalagem, já estranhou que sua mensagem com a folha do jornal havia sido retirada da parede.
Teria sido seu Zezé obrigado a arrancar a notícia? Sob a mira do 38?
Seu Derci não era homem de muitas valentias. Disfarçou o tremor, segurando firme o cabo da espingarda.
O silêncio era dono do lugar.
Resolveu ir verificar no boteco se havia movimento. Nem chegou a dar um passo, quando a porta de ligação da sala com o corredor aberta bruscamente, o fez retroceder assustado.
“Onde está o homem, seu Zezé? Acabou com ele? Deu-lhe uma cacetada?”
“Calma, seu Derci, guarde esta arma se não quiser perder ela por porte ilegal. Lá em cima, descansando num dos quartos, se encontra o delegado Praxedes Alexandrino”.
“O que? Mas...”
“Sim, o senhor não leu o nome e a explicação abaixo da figura do jornal. A foto que a notícia estampava era a do delegado que está tratando do crime e não a do bandido. Outra vez, leia a notícia com atenção e completa para não nos pregar tamanho susto.”
Seu Derci saiu culpando a mídia que não comunica corretamente. Como noticiar “criminoso invade sítio e mata caseiro”, e botar abaixo, na notícia, a foto do delegado? Errado isto. Lendo a manchete e vendo a imagem, é óbvio que só se podia pensar no criminoso. E depois lembrou que o nome sob a foto era muito complicado. Realmente ele não o leu.
Saiu considerando. Como podia um delegado se chamar Praxedes Alexandrino? Esta vida nos prega cada peça!